terça-feira, 29 de abril de 2014


queria. todo dia.
como por magia,
onde eu tocasse: poesia.

utopia?
a vida é elegia?
também é sinfonia.


(Imagem: Autumm Sun - Egon Schiele)

sábado, 29 de março de 2014

Máquina Mortífera


O granizo precipitava-se, furioso, na janela do carro, afoito pra atravessar o vidro e atingir seu rosto. Na multidão nomeada anônima. Ferir, rasgar, escarafunchar. Tolo, ainda que indelével. Não desperdiça essa energia. Anestesiada, mal poderia sentir o açoite dos dias que riem, sarcasticamente, em sua cara. Gargalhando alto. Expondo um sorriso cruel, todo dentes. Projetado nas telas da marginal do rio pinheiros, onde o trem da cptm ainda corre. Contra todas as previsões, e expectativas. Contra todas as forças e impropérios jogados ao vento.

Pra onde foram os dias, meses, dialetos e mistérios? Varridos do calendário e das gramáticas. Tombadas com lombadas empoeiradas. Capítulos, versículos, estrofes. Passaram esmigalhando apertados, raspando fundo todas as feridas inimagináveis cultivadas com ajuda da máquina mortífera que alimenta e dá morada dentro da caixa lacrada, apelidada carinhosamente mente. A máquina, ingrata, voltou-se contra sua criadora, e tornou-a refém. Ela cresceu, tomou corpo, tomou conta e já não há mais espaço pra morar em um terreno do qual costumava ser única proprietária. Virou inquilina dentro do sótão de seu próprio cérebro. Paga aluguel pra morar naquele lugar turbulento e apertado. Altos tributos pelos pensamentos mais ínfimos.

E, para além de tudo aquilo, continua tentando alisar o que é áspero. Horas em pé, suando, passando à ferro as marquinhas das pontas que se dobraram. Está cheio de pedregulhos por ali. Entulhos. Basta virar um pouco o rosto, pra variar, e olhar nos cantos. As montanhas de pedras que juntou todos esses anos pra manter um caminho livre. Avalanche. Era só questão de tempo. E invariavelmente alguém teria que cair, alguém ia ralar os joelhos, ia ficar soterrado.  Finalmente arrancando o acolchoado das bordas agora.

Porque as flores são pontiagudas. E suas pontas estão forçando para perfurar a pele. Ansiosas pra marcar com sangue, tatuar primavera na pele de quem chorou inverno nas quatro estações. Ainda que o granizo insista em descarregar seu ódio sob as plantações. Quem viverá pra ver o verão?

quinta-feira, 27 de fevereiro de 2014

Mistérios da Meia Noite


Amo a madrugada. Sou apreciadora dos mistérios da meia noite. Aqueles que voam longe. As horas que antecedem a aurora possuem um efeito analgésico sobre mim. O relógio desliza livre e descompromissado. E aquela menina, tão desgarrada, desamparada, que se apaixonou? Ah! Quem sem importa? A madrugada não sabe nunca, se vão, se ficam, quem vai, quem foi. E ela não precisa saber. Ela não pressiona. Ela só passa, tranquila.

Talvez seja essa sensação de plenitude que me faz acreditar no silêncio. Que me impede, dia após dia, de perder a fé em uma rotina macia. Em um futuro bêbado, que aproxima-se trançando as pernas e enrolando a língua. Ele cospe aos brados, para quem quiser ouvir, insistindo em enganar-se, "- estou limpo há 'N' dias." Palmas! A madrugada é relapsa. É amiga. Faz vista grossa. Ela deixa tudo passar. Afinal, nada mais pode ser efetivamente resolvido até o dia recomeçar. Então pra que tentar?

É hora de apenas desligar o motor engasgado dentro da mente. O barulho insistente... o cheiro de borracha queimada.... meus olhos ardem. Chega agora. Ninguém mais pra me cobrar a explicação de um comentário, de um olhar, de um movimento. Ou, pior, da falta deles.

Silêncio na rua, gatos miando na varanda, assobio do vento... o apito do guarda noturno e o ronco de sua moto passando na frente de casa. Um ressonar lento, compassado e ritmado no andar de cima. A tv ligada em um canal qualquer, o volume baixinho, o suficiente apenas para eu ouvir o sussurro das risadas artificiais e repetidas ao fundo de um sitcom reprisado.

Por isso, quando ouço os pássaros começando a se agitar, anunciando o nascer do sol, sinto uma pontada de raiva... Tenho vontade de gritar, furiosa, pela janela: "Ainda não! Voem daqui, estraga-prazeres, e vão cantar longe da minha paz!"

Eu sempre imaginei que o sol nasce por que os pássaros começam a cantar, e não o inverso. As aves, de alguma forma misteriosa, rasgam o veludo escuro do céu estrelado, e com seu gorjeio, vão despertando o mundo à força, enquanto o sol, espalhafatoso como é, escapa por trás da cortina aveludada, iluminando e brilhando, triunfante. A lua, discreta, continua quietinha por ali, mas quase ninguém mais consegue enxergá-la depois de todo esse exagero.

Talvez eu seja mesmo como a lua. Silenciosa e discreta. Fico intimidada perto do sol. Há dias em que, perita como sou, me escondo sob as nuvens e hão de jurar que eu sumi. Eu continuo ali, ainda que ninguém consiga me ver.

Mas eu sei que, algum dia, em algum momento, eu serei lua cheia. E finalmente poderei emanar uma luz grande e forte. Inteira e brilhante.

No dia que eu puder admitir que a madrugada é minha parceira porque ambas somos procrastinadoras profissionais.

No dia que eu andar de mãos dadas e em paz com o sol dentro de mim, assobiando junto com os pássaros.


PS 1 - esse texto possui trechos da música "Mistérios da Meia-Noite - Zé Ramalho"
PS 2 - esse texto foi concebido e finalizado de madrugada... ;)

sexta-feira, 17 de janeiro de 2014



Na cidade das sombras perpendiculares
vielas estreitas e sem nome
abrigam casas lotadas, desabitadas.

ventos de mármore
nuvens de chumbo
flores de lágrimas

eternos são os guardiões barrocos
olhos de pedra agonizantes

ainda, os pássaros cantam, ininterruptamente.



(28-09-2011)

quinta-feira, 19 de dezembro de 2013

Memórias Antiaderentes


Subitamente o ar ficou tão denso que até o som dos pássaros voando ecoava de forma quase insuportável. O sol escondeu-se por trás de uma grande nuvem cinzenta e a penumbra deixou-a inquieta.

Algo estava prestes a acontecer.

Mais uma vez reabilitando memórias antiaderentes, ela gostaria de entender o que, por quê, e como as coisas haviam atingido aquele ponto de ebulição descontrolado. As instruções eram claras. Ela já as conhecia quase de cor: um punhado generoso de reminiscências do dia, cozinhar em banho maria, sob fogo brando. Acrescentar, lentamente, significações pessoais e brotos de desculpas frescas. Uma pitada de autocontrole. Inala-se o vapor mnemônico com os olhos vendados. Retira-se tudo do fogo antes que levante fervura. As memórias colhidas devem ser ingeridas em até 48 horas.

Em algum momento, porém, a receita desandou. Drama coalhado borbulhando. Flashs catárticos em crostas oníricas. Atordoada, pôs-se a checar datas de validade. "As desculpas não são exatamente frescas..." - pensou, um tanto culpada, mas lembrou-se que, certa vez, usara desculpas amanhecidas, e o sabor havia permanecido perfeito! O que teria acontecido?

Significações pessoais excelentes, recém colhidas e em temperatura ambiente... reminiscências do dia pré selecionadas e peneiradas... Autocontrole!! Ela sabia onde errara. Exagerou no autocontrole. Autocontrole em demasia transformara suas memórias antiaderentes em uma poção borbulhante e poderosa.

O sol agora escorregava do céu e aproximava-se cada vez mais da terra, ofuscando e confundindo tudo ao redor com seu clarão. E ela sentiu-se livre.

O chão estava forrado de desculpas queimadas. As paredes respingavam, multicoloridas, com o autocontrole inflamável reprimido. Um caldeirão de gargalhadas açucaradas. Calóricas e gordurosas talvez, mas, ainda assim, deliciosas. Ela lambeu os dedos e engoliu tudo sozinha, desde os pequenos sorrisos até a última risadinha sarcástica.