sábado, 29 de março de 2014

Máquina Mortífera


O granizo precipitava-se, furioso, na janela do carro, afoito pra atravessar o vidro e atingir seu rosto. Na multidão nomeada anônima. Ferir, rasgar, escarafunchar. Tolo, ainda que indelével. Não desperdiça essa energia. Anestesiada, mal poderia sentir o açoite dos dias que riem, sarcasticamente, em sua cara. Gargalhando alto. Expondo um sorriso cruel, todo dentes. Projetado nas telas da marginal do rio pinheiros, onde o trem da cptm ainda corre. Contra todas as previsões, e expectativas. Contra todas as forças e impropérios jogados ao vento.

Pra onde foram os dias, meses, dialetos e mistérios? Varridos do calendário e das gramáticas. Tombadas com lombadas empoeiradas. Capítulos, versículos, estrofes. Passaram esmigalhando apertados, raspando fundo todas as feridas inimagináveis cultivadas com ajuda da máquina mortífera que alimenta e dá morada dentro da caixa lacrada, apelidada carinhosamente mente. A máquina, ingrata, voltou-se contra sua criadora, e tornou-a refém. Ela cresceu, tomou corpo, tomou conta e já não há mais espaço pra morar em um terreno do qual costumava ser única proprietária. Virou inquilina dentro do sótão de seu próprio cérebro. Paga aluguel pra morar naquele lugar turbulento e apertado. Altos tributos pelos pensamentos mais ínfimos.

E, para além de tudo aquilo, continua tentando alisar o que é áspero. Horas em pé, suando, passando à ferro as marquinhas das pontas que se dobraram. Está cheio de pedregulhos por ali. Entulhos. Basta virar um pouco o rosto, pra variar, e olhar nos cantos. As montanhas de pedras que juntou todos esses anos pra manter um caminho livre. Avalanche. Era só questão de tempo. E invariavelmente alguém teria que cair, alguém ia ralar os joelhos, ia ficar soterrado.  Finalmente arrancando o acolchoado das bordas agora.

Porque as flores são pontiagudas. E suas pontas estão forçando para perfurar a pele. Ansiosas pra marcar com sangue, tatuar primavera na pele de quem chorou inverno nas quatro estações. Ainda que o granizo insista em descarregar seu ódio sob as plantações. Quem viverá pra ver o verão?

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