quinta-feira, 19 de dezembro de 2013

Memórias Antiaderentes


Subitamente o ar ficou tão denso que até o som dos pássaros voando ecoava de forma quase insuportável. O sol escondeu-se por trás de uma grande nuvem cinzenta e a penumbra deixou-a inquieta.

Algo estava prestes a acontecer.

Mais uma vez reabilitando memórias antiaderentes, ela gostaria de entender o que, por quê, e como as coisas haviam atingido aquele ponto de ebulição descontrolado. As instruções eram claras. Ela já as conhecia quase de cor: um punhado generoso de reminiscências do dia, cozinhar em banho maria, sob fogo brando. Acrescentar, lentamente, significações pessoais e brotos de desculpas frescas. Uma pitada de autocontrole. Inala-se o vapor mnemônico com os olhos vendados. Retira-se tudo do fogo antes que levante fervura. As memórias colhidas devem ser ingeridas em até 48 horas.

Em algum momento, porém, a receita desandou. Drama coalhado borbulhando. Flashs catárticos em crostas oníricas. Atordoada, pôs-se a checar datas de validade. "As desculpas não são exatamente frescas..." - pensou, um tanto culpada, mas lembrou-se que, certa vez, usara desculpas amanhecidas, e o sabor havia permanecido perfeito! O que teria acontecido?

Significações pessoais excelentes, recém colhidas e em temperatura ambiente... reminiscências do dia pré selecionadas e peneiradas... Autocontrole!! Ela sabia onde errara. Exagerou no autocontrole. Autocontrole em demasia transformara suas memórias antiaderentes em uma poção borbulhante e poderosa.

O sol agora escorregava do céu e aproximava-se cada vez mais da terra, ofuscando e confundindo tudo ao redor com seu clarão. E ela sentiu-se livre.

O chão estava forrado de desculpas queimadas. As paredes respingavam, multicoloridas, com o autocontrole inflamável reprimido. Um caldeirão de gargalhadas açucaradas. Calóricas e gordurosas talvez, mas, ainda assim, deliciosas. Ela lambeu os dedos e engoliu tudo sozinha, desde os pequenos sorrisos até a última risadinha sarcástica.

Nenhum comentário: