
Amo a madrugada. Sou apreciadora dos mistérios da meia noite. Aqueles que voam longe. As horas que antecedem a aurora possuem um efeito analgésico sobre mim. O relógio desliza livre e descompromissado. E aquela menina, tão desgarrada, desamparada, que se apaixonou? Ah! Quem sem importa? A madrugada não sabe nunca, se vão, se ficam, quem vai, quem foi. E ela não precisa saber. Ela não pressiona. Ela só passa, tranquila.
Talvez seja essa sensação de plenitude que me faz acreditar no silêncio. Que me impede, dia após dia, de perder a fé em uma rotina macia. Em um futuro bêbado, que aproxima-se trançando as pernas e enrolando a língua. Ele cospe aos brados, para quem quiser ouvir, insistindo em enganar-se, "- estou limpo há 'N' dias." Palmas! A madrugada é relapsa. É amiga. Faz vista grossa. Ela deixa tudo passar. Afinal, nada mais pode ser efetivamente resolvido até o dia recomeçar. Então pra que tentar?
É hora de apenas desligar o motor engasgado dentro da mente. O barulho insistente... o cheiro de borracha queimada.... meus olhos ardem. Chega agora. Ninguém mais pra me cobrar a explicação de um comentário, de um olhar, de um movimento. Ou, pior, da falta deles.
Silêncio na rua, gatos miando na varanda, assobio do vento... o apito do guarda noturno e o ronco de sua moto passando na frente de casa. Um ressonar lento, compassado e ritmado no andar de cima. A tv ligada em um canal qualquer, o volume baixinho, o suficiente apenas para eu ouvir o sussurro das risadas artificiais e repetidas ao fundo de um sitcom reprisado.
Por isso, quando ouço os pássaros começando a se agitar, anunciando o nascer do sol, sinto uma pontada de raiva... Tenho vontade de gritar, furiosa, pela janela: "Ainda não! Voem daqui, estraga-prazeres, e vão cantar longe da minha paz!"
Eu sempre imaginei que o sol nasce por que os pássaros começam a cantar, e não o inverso. As aves, de alguma forma misteriosa, rasgam o veludo escuro do céu estrelado, e com seu gorjeio, vão despertando o mundo à força, enquanto o sol, espalhafatoso como é, escapa por trás da cortina aveludada, iluminando e brilhando, triunfante. A lua, discreta, continua quietinha por ali, mas quase ninguém mais consegue enxergá-la depois de todo esse exagero.
Talvez eu seja mesmo como a lua. Silenciosa e discreta. Fico intimidada perto do sol. Há dias em que, perita como sou, me escondo sob as nuvens e hão de jurar que eu sumi. Eu continuo ali, ainda que ninguém consiga me ver.
Mas eu sei que, algum dia, em algum momento, eu serei lua cheia. E finalmente poderei emanar uma luz grande e forte. Inteira e brilhante.
No dia que eu puder admitir que a madrugada é minha parceira porque ambas somos procrastinadoras profissionais.
No dia que eu andar de mãos dadas e em paz com o sol dentro de mim, assobiando junto com os pássaros.
PS 1 - esse texto possui trechos da música "Mistérios da Meia-Noite - Zé Ramalho"
PS 2 - esse texto foi concebido e finalizado de madrugada... ;)